Thaís Dourado
Todas as quintas-feiras, às cinco horas da tarde, Lylja e Andrew tinham o ritual de descer à estação de metrô e passar horas numa loja de discos que lá havia, de nome Music'n Mind. Naquele dia eles cabularam aula para ficarem na praça de manhã, em suas devagações que nunca chegariam à lugar algum, tomando café quente e fumando seus Lucy Strike. Conversaram sobre música e astronomia e depois almoçaram num café qualquer, então seguiram para Music'n Mind.

_ O que você fará quando eu morrer?
_ Como "o que eu farei"? Irei ao seu funeral dar uma boa cuspida no seu túmulo, Lylja! - disse Andrew rindo-se.
_ Eu falo sério, Andrew. Você choraria?
E se fez um breve silêncio. Só se ouvia os ruídos vindos dos fones dos outros clientes da loja.
_ Creio que não. Chorar é para os fracos. Lágrimas não resolvem nada. Nunca resolveram. Só causam uma falsa compaixão, à que eu chamo de um um sentimento de pena desprezível.
_ Não quero que chores no dia do meu funeral.
_ Nem eu quero que chores quando vier meu fim.
_ Eu não o faria. Concordo plenamente com o que tu disseste. Lágrimas são para os fracos. Vamos lá fora pra eu fumar um cigarro.
_ Vamos. - concordou Andrew.
Chovia. Os dois estavam de bom humor naquele dia. Mas essa conversa sobre morte fez Andrew lembrar de algo que não queria, mas, ao mesmo tempo, se forçava a lembrar-se todos os dias. Não queria contar à ninguém, mas sentira enorme necessidade de segredar à Lylja sobre o caso. Porém era muito orgulhoso. Não queria que ela soubesse que ele estava doente. Muito doente.
_ Creio que morrer seja demasiado ruim. - disse Lylja soltando a fumaça da primeira tragada de um cigarro que acabara de acender.
_ Talvez sim. Ou não. O lado ruim é não termos a escolha de poder fazê-lo e voltar. Confesso que tenho uma curiosidade de conhecer a "cara da morte". Ela deve ser muito atraente, posto que é mais fácil morrer que nascer.
_ Não diga isso, Andrew. Não quero que morras, que me deixe só. Apesar de ser conformada com o fato de que todos morreremos, não quero que morras antes de mim. - disse Lylja seriamente.
Andrew percebeu nos olhos da amiga tanto a seriadade quanto a sinceridade nas palavras que ela proferira. Tratou logo de descontrair soltando um deboxado riso.
_ Acenda esse cigarro para mim. - pediu ele.
_ Você não quereria passar tempo demais comigo. Ninguém consegue passar tempo demais nem convivendo consigo mesmo, imagine com outrém! Penso que seja essa a razão da morte, cara amiga.
_ Não sei, pode ser que estejas certo. Mas a verdade é que, pelo menos em vida, quero-lhe sempre ao meu lado.
_Ah! Deixe de bobagens, Lylja, sabes que, em vida, estarei sempre aqui para o que precisares e sempre.
_ Obrigada.
Andrew disse que precisava ir ao banheiro. Jogou o quarto cigarro no chão molhado da calçada em frente à Music'n Mind e pisou de leve, porque a água o apagara facilmente. Entrou no banheiro com os olhos mareados. Uma lágrima rolou em seu rosto e, olhando-se fixamente no espelho. Não a enxugou, deixou que aquela gota de água caísse na pia encardida e descesse pelo ralo, como aconteceria com tudo o que construira quando morresse.
Ele permaneceu lá por quase vinte minutos e Lylja havia entrado no banheiro atrás dele.
_ O que você está fazendo no banheiro masculino? És louca? - e deu um sorrizinho sem graça para disfarçar o rosto pálido de devaneios.
_ Imagine! Vim aqui só lhe trazer uma cerveja. - e entregou a garrafa para ele e saiu caminhando em direção à porta - Estou te esperando ali fora pelos séculos, quando resolveres sair, me avise pra eu voltar à essa geração.
E saiu sorrindo, mesmo percebendo que Andrew estava triste. Ela fazia de propósito. Sempre que percebia algum desânimo no rosto dele tratava logo de ignorar. Sempre funcionava, mas dessa vez povocou um efeito inesperado.
Andrew olhava Lylja enquanto ela saía caminhando. Andou com passos acelerados em seu rumo, virou-a. Encararam-se. O sorriso de Lylja se transformou num olhar muito intenso, diretamente nas pupilas de Andrew, e viu no amigo certo desespero. Permaneceram se olhando por quase dois minutos. Beijaram-se.
Foi um beijo longo, calmo, num acesso de ilucidez de ambos. Mas o melhor de todas as bocas que já haviam beijado, de todos os corpos que já haviam tocado, de todas as íntimas sensações que houveram outrora eperimentado. Quando pararam, se olharam mais uma vez e se abraçaram por um tempo maior ainda. Voltava a chover. Já eram quase nove horas. Voltaram de mãos dadas à Music'n Mind.
Não proferiam uma palavra. O silêncio para eles valia mais que milhares da mesma.
Depois de ouvirem todos os LPs dos Beatles, Buzzcocks e Dylan - estilos diferenciados, mas adorados por ambos - pela enésima vez, foram para a sessão de livros.
_ Estás demasiado magro, Andrew. Deveria parar de fumar.
_ Veja lá o que falas, não és nem de longe uma garota "pró-saúde". Veja esses olhos! Mais fundos que o Mar Mediterrâneo. O café e a cerveja estão lhe fazendo muito mal.
E riram-se os dois lembrando-se de que seus pais falavam a mesma coisa quando ainda moravam com eles. Folhearam dois ou três livros e saíram a fim de pegar o último metrô rumo à suas casas. Seguiram juntos até certo ponto, sempre fraternalmente abraçados, e, nesse ponto, separaram-se. Até quando? A morte era tão previsível quanto o apocalipse.